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A Ira de Deus

Toda cidade pequena de interior, toda vila rural, todo povoado ou pequena comunidade costuma ser, por excelência, extremamente ligada a religião. Nestes locais, faltar à Missa dominical é um pecado tão grande quanto matar, roubar, mentir ou cobiçar a mulher do próximo.
Entretanto, o povoado de Jeremueba, naquele sertão bravo,

era autêntica negação deste costume tão brasileiro. A igrejinha, por exemplo, na qual não cabiam mais de trinta pessoas levara bem mais de trinta anos para ser concluída.
De tábua, telhado de barro, chão de terra batida e bancos de madeira tosca, vivia ao abandono. Padre não se aventurava a passar por ali. Muito menos parar. Nem para oferecer um almocinho, um arroizinho com galinha ao molho pardo, tão ao gosto do pessoal da cidade, ao padre a população vila prestava.
Por isso mesmo, o sacristão já não aparecia na igreja há mais de um ano, A porta estava tão cheia de teias de aranha que se tirassem as teias era bem capaz da igreja desabar.
Tanto essa má-fama do vilarejo correu mundo que acabou por preocupar o bispo, Santo homem que, sentado em sua mesa, recebeu com dignidade o padre da Paróquia mais próxima. Depois de beijar o anel episcopal e levantar-se (estava ajoelhado), o padre expôs o problema: “Aquelas pobres almas, cordeiros inconscientes afastados do rebanho de Deus, não tinham culpa. Era necessário um pastor para guiá-los no caminho do bem, da caridade cristã e da fé, afastando-as do abismo do fogo e do inferno”.
Mas, o vigário tinha consigo que era necessário um padre extremamente vigoroso, severo e ardiloso, para esparramar o respeito e o povo de volta à santa Igreja Católica.
“Ah – disse o bispo – eu tenho um que vai caber direitinho dentro desse molde”. E viu a oportunidade de ficar livre de um padre alemão que nenhuma paróquia desejava, pois de tão severo costumava impingir mil e duzentos padre-nossos por qualquer pecadinho do tipo “cheguei tarde e embriagado em casa, bati na mulher e espanquei os meninos”, e mil ave-maria quando a mulher confessava, arrependida, que roubara dez tostões dos bolsos das calças do marido, enquanto ele dormia, para pagar uma conta que ela abrira escondida no armarinho da esquina.
E lá se foi o Padre Kurtz, montado no lombo de um burro velho e empacador, a caminho de Jeremueba. Qualquer cavalo pangaré demoraria três dias para levar o Padre Kurtz até o vilarejo, já o burro velho chegou em uma semana.
Mas chegou. E espalhando terror pela população. Enquanto brandia a vassoura contra as teias de aranha que teimavam em prender o badalo do pequeno sino e fazia o sacristão suar lavando e brilhando as imagens de santos (“trabalhei num dia só, o que nunca tinha trabalhado em cinco anos”, pensava o pobre homem pendurado numa escada bamba, agarrando às saias do pobre Santo Antonio que, àquelas horas também já morria de medo de desabar altar abaixo com aquele bêbado agarrado aos seus pés”), Padre Kurtz ameaçava com o fogo mais ardente do inferno quem não comparecesse à missa do próximo domingo. E já havia gente tremendo de medo.
O domingo chegou com um céu meio ameaçador. Nuvens escuras prometiam muita chuva e já havia quem temesse até pela sorte do jogo de futebol programado para aquela tarde contra o time de uma fazenda próxima, eterna rival do Jeremueba Sport Club. Mas, à missa ninguém ousou faltar.
Da sacristia, olhando todo aquele povo, que tomava todos os bancos e ainda sobrava gente em pé, o Padre “curto” como todos já o conheciam, esfregou as mãos, satisfeito. Chamou o sacristão de lado e deu-lhe algumas ordens. “Você sobe no telhado, arranca uma telha e quando eu der o sinal você…”.
Finalmente chegou a tão teminada hora do sermão. E o Padre enristou o dedo, inflamado: “Deus está furioso com vocês”. Neste instante um trovão ameaçador troou nos ares. O religioso aproveitou a deixa e continuou: “E para provar isto, ele vai fazer chover fogo bem aí na frente do altar. Uma tocha de fogo”. E no seu sotaque carregado de alemão, gritou: “Fogo”. Imediatamente uma tocha caiu justamente da telha arrancada pelo sacristão. Meia dúzia de crédulos desmaiaram. Quase satisfeito com o efeito da coisa, o Padre gritou novamente: “Fogo”. Nova tocha caiu no chão, queimando e espalhando um cheiro de palha e querosene queimadas em todo o ambiente.
Entusiasmado, Padre Kurtz gritou novamente: “Fogo”. Nova chuva de palha ardente caiu igreja a dentro. Quando todos já se dispunham a atirar-se de joelhos e pedir a Deus perdão por serem pagãos e incrédulos, e prometerem jamais faltar a uma missa em todo o resto de suas vidas, o Padre braniu: “Fogo”.
…Foi então que apareceu no buraco do telhado, a cara gaiata (e a boca desdentada do sacristão) que justificou: “ô seu padre “curto”, num pede mais fogo não que acabô a paia aqui im cima”…

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rdportari

Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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