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Perdidos na Roça

Zé do Prego não era de muito falar. E claro, que contribuíram para isso a suas origens mineiras. Fazia seu trabalho calado, sem reclamar da chuva, do sol, do serviço interminável ou do pouco ganho. É claro, também, que resmungava contra as coisas que não gostava. Mas era para dentro, engolido junto com a saliva que tinha gosto do fumo de corda que costumava enrolar em seus cigarrões de palha.
Qando ia na vila, respondia aos cumprimentos dos amigos pela metade. “Bom dia”, lhe diziam. Ele respondia monossilábico: “…Dia”. A coisa só mudava se fosse de tarde, pois aí ele responderia, infalivelmente: “… tarde”.
Jamais tomou uma pinga no balcão da venda. Quando vinha

para as compras, trazia no saco branco de farinha, um litro antigo com uma rolha enrolada em palha de milho. Nem falava pra que era. Joaquinzão da venda já sabia que era o litrinho da branquinha. Dava pra uma semana se a mulher não ajudasse, às vezes, na hora da janta.
Chegava com seu andar indolente, desviava das rodinhas que costumavam ficar conversando fiado entre os sacos e caixotes de mantimentos, ia para o fundo do armazém e esperava com paciência, o Joaquinzão providenciar a lista da semana. Também tão infalível quando o litro de pinga: arroz, feijão, carnes, gordura, óleo; nada dessas coisas estava na lista. Ele plantava e colhia lá mesmo na rocinha. O que ele levava era o açúcar, café, essas coisas que se compra na cidade. E saía ansioso para chegar logo em casa, sempre na hora da caninha boa que abria caminho para o jantar. Vez que outra levava um agrado para o filho Mirinho: um pirulito, uma bala-doce. A mulher, Hermelinda (único exagero de Zé do Prego foi casar com uma mulher que tinha o nome grande coisa que ele logo corrigiu, abreviando primeiro para Melinda, depois Linda e acabou mesmo como “Véia”, se contentava com uma rapadura, um pé-de-moleque..
Mesmo assim, com seus costumes e esquisitices, Zé do Prego era benquisto pela vizinhança. Nunca teve problemas de divisas com ninguém, nunca proibiu os vizinhos de atravessarem sua roça ao ir para os bailes nas noites de sábado, e quando o patrão chegava nos fins de mês trazendo algum agrado para ele, repartia sempre com o pessoal, um pedaço de fumo goiano, um carotinho de pinga… essas coisas. Só não gostava mesmo era de muita prosa.
Ia à missa da capelinha. Nunca se confessou com o padre. A única vez que tentou, deixou o velho padre numa dúvida cruel. “Estarei ficando surdo”?, pensou o frei Atanasio, ao ouvir aqueles murmúrios do outro lado da telinha do confessionário, sem entender direito o que o outro dizia. Falou tão baixo que o padre não sabia se o homem era santo ou estava confessando crimes “inconfessáveis”. Por via das dúvidas acabou por perdoá-lo.
Naquela tarde, a rotina de Zé do Prego foi quebrada, finalmente. Ao retornar da roça, ia pela estradinha pensativo, sem saber se no outro dia deveria limpar o curral para receber a nova boiada que o patrão mandara lhe avisar que chegaria, ou descia para o “corguinho” dar umas fisgadinhas nuns lambaris. De repente notou o poeirão que vinha se formando na estrada, graças a alta velocidade desenvolvida por um automóvel qualquer, que, como dizem “e vem na toda”. Zé do Prego, cuidadoso, saiu da estrada de terra e passou a caminhar nos morrinhos de terra, à beira da cerca.
O automóvel veio fazendo poeirão, passou por ele, diminuiu a velocidade, brecou, engrenou marcha-a-ré, e voltou. Parou ao seu lado. Dentro, três rapazes da cidade. Cabeludos, barbudos, ouvindo uma música estranha, em alto volume, naquilo que chamam de toca-fitas.
– O caipira, você sabe dizer pra que lado se vai pra São Paulo?
Zé do Prego não gostou de ser chamado de caipira. Demorou na resposta. Tirou palha do bolso, fumo de trás da orelha, preparou o canivete, e começou a preparar um cigarrão. A enxada continuava nas costas.
– Sei não – respondeu.
– E como a gente faz pra ir pros lados de Belo Horizonte?
– Terminando de picar o fumo, Zé guarda o canivete com cuidado na bainha da calça, e começa a amassar o fumo nas palmas das mãos.
– Sei…
– Ô, mineiro, nós estamos perdidos, por aqui. Pra que banda fica Uberaba?
Acabando de enrolar o cigarrão, ele o põe na boca, leva de um lado para outro, apalpa os bolsos, acha a “binga” bate a pedra e tira uma boforada.
– Num sei.
– Mas, você não sabe nada, hem?
Pela primeira vez em sua vida, ele falou mais que duas palavras:
– É… eu num sei nada, mas vocês é que tá perdido…

Sérgio Carlos Portari

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rdportari

Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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