Etc&Tal – 19/01/1997 – Sérgio Portari

Texto publicado no Jornal Pontal do Triângulo em 19/01/1997, de autoria de meu pai, Sérgio Portari. Vale a pena reflexão, mesmo depois de 22 anos:

Domingo de manhã. Sol queimando a testa suada dos jogadores que correm atrás da bola branca e tentam impulsioná-la na direção do gol e balançar a rede amarela. Mesmo tendo ido dormir às 5 horas da madrugada e a despeito dos meus 118 quilos bem pesados corro pela ala esquerda e recebo o passe do Valtemon. Ergo a cabeça e ameaço o chute de perna canhota. O zagueiro adversário, Zé Paulo, tenta fechar o ângulo, mas eu corto para dentro; saio também do Marão e, na saída do goleiro, mando para o canto esquerdo: gol.

Não dá para vibrar muito. O goleiro do outro time é meu filho Rodrigo. Qualquer provocação virará uma discussão que se estenderá por toda a tarde, mesmo com as broncas de dona Lília que quererá ouvir as confissões dos convidados do Faustão.

Fim do “rachinha”. Voltamos todos para casa. Eu, feliz, vivendo aquilo que todo homem sonha: joguei futebol com meus dois filhos. Apesar das discussões italianamente resolvidas aos berros, foi uma manhã feliz. Serginho, aos 19 anos, já encaminhado numa faculdade. Rodrigo, aos 13, já é um homenzarrão de mais de 1,80 m de estatura e, até, barba na cara. Que mais quereria eu, hoje pequenino em face às minhas duas criaturas?

Depois do almoço, folheio um relatório enviado à imprensa pelo Unicef – o órgão das Nações Unidas que cuida da infância e adolescência – abordando a exploração do trabalho infantil.

Uma foto tocante me chama a atenção. Mais que isso, toca-me fundo o coração. Sentado em uma banqueta, à beira de uma mesa de trabalho, um garotinho oriental, de seus seis anos quando muito, dorme um sono profundo, próprios daqueles que estão mortos de cansaço, de tanto trabalho. Na mesa, algumas bolas de baseball, de couro e costuradas à mão. Ao lado, agulhas, linhas próprias para aquele tipo de “pelota” e muito trabalho ainda pela frente.

Lembro-me que, há alguns dias, li num órgão de imprensa que uma famosa fabricante de bolas e materiais esportivos foi acusada de utilizar trabalho escravo no Oriente, para fabricar os produtos que nós, aqui no lado ocidental do planeta, tratamos com intimidade e, muitas vezes, desdém.

Cada chute, cada gol, cada prazer que experimentamos ao disputar uma partida de futebol, seja num campeonato mundial ou numa “pelada” entre amigos, pode ter custado tanto sofrimento a garotinhos como aquele da foto. Nós, marmanjos que nos comportamos comos crianças diante de uma bola, talvez nem saibamos que o garotinho que a costurou à mão não teve sequer oportunidade de dar um chutinho que seja numa bola. Trabalha até 16 horas por dia em troca de 30 dólares mensais, apesar de ter idade para andar com a chupeta (se não a mamadeira) pendurada no pescoço.

Meu Deus, que mundo é esse? Como podem algumas pessoas serem desprovidas de coração como aqueles que escravizam essas pobres criaturas? Por que Deus coloca no mundo pais que usam a infância de seus filhos de forma tão miserável?

Lembro-me que, com o dinheiro da “vaquinha” que fizemos domingo no campo, um de nossos “atletas” foi a Rio Preto e comprou duas bolas importadas, numa loja de material esportivo, pelo preço que equivale a metade de um produto nacional. As bolas, por coincidência, estão no porta-malas do meu carro. Abro-o e apanho as ‘redondas’. Leio próximo ao bico:”Made in Pakistan”. Que “piedosas” pessoas somos nós? Em que cúmplices desse crime nos transformamos? Será que vou marcar algum gol no jogo desse domingo?`

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rdportari

Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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