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O Mentiroso

O velho Mané do botequim da Vila até já tinha acostumado a esperar. Todos os dias, dava quatro horas, o pessoal abandonava a enxada, tomava seu banho, montava 1no zaino e tocava para a venda tomar “uma daquelas que matou o guarda, seu Mané!”. E tome conversa “fiada”.
Aliás, conversa fiada era uma das especialidades de Raimundo, caboclo muito trabalhador, honesto, alegre (sem ele as festas da Vila não tinham graça), mas com um pequeno defeito: era mentiroso que dava pena de ver. Ninguém mais acreditava no Raimundo, principalmente os freqüentadores da rodinha da venda do seu Mané.
Mesmo assim, era gostoso ouvi-lo contando aquelas histórias cheias de fantasias. Nelas, ele sempre se sobressaía como herói e sempre invocava o testemunho de algum parente (que não estivesse por perto):
— Pois o meu primo Gervásio tava de aprova — argumentava sempre ao concluir uma narração ante as gargalhadas e os olhares incrédulos dos amigos.
Uma de suas histórias prediletas era aquela em que o time da Vila disputava o jogo final de um torneio rural, num povoado distante. Jogo empatado, fôra para a prorrogação e logo no início os adversários marcaram o primeiro gol. Raimundo, em desespero de causa, no último minuto da prorrogação, empatara o jogo com um chute violentíssimo, quase do meio do campo.
Até aí a turma acreditava. Mas, ele insistia em concluir o caso, jurando que a bola, ao passar pelo goleiro, entrara pelo pasto da fazenda e acertara na cabeça de um touro que pastava logo adiante, matando-o, ao pegar em cheio, bem entre os chifres. Neste ponto da narrativa todos saíam de perto, para rir escondido.
Outro dos freqüentadores habituais da roda era o seu Domingos. Descendente de espanhol, sempre sério, era o primeiro a chegar na venda, pois morava mais perto da Vila. Religiosamente, sempre à mesma hora, chegava, pedia uma caninha, sentava-se num velho caixote de sardinhas prensadas e ficava aguardando a chegada dos companheiros. Dono de uma honestidade da qual ninguém colocava dúvidas, era visto até com certa reverência pelos amigos.
Exatamente numa tarde de vento quente e seco, de final de agosto, a turma começou a chegar e sentiu a ausência do velho Domingos, que naquela tarde não estava sentado no seu caixote “cativo”. Mas, foram tomando a sua pinguinha e entabulando a conversa, pois em breve aconteceriam as eleições e a política começava a esquentar. As brigas dos candidatos e as fofocas de campanha eram o prato de cada dia, nas rodas dos botecos da vila, principalmente na venda do velho Mané.
Ainda estranhando a ausência de seu Domingos, os companheiros viram, da porta, que Raimundo descia a rua meio apressado. Um deles gritou:
— Ôôô, Raimundo, não vem pra venda, hoje, não?.
— Não, hoje eu não posso! — respondeu o outro.
— Venha ao menos contar uma mentira para a gente, depois você vai embora! — ponderou o amigo.
— Estou com muita pressa! Tô indo na casa do Seu Domingos. Ele morreu faz umas duas horas!
— O quê?!?!
— Morreu! Minha mulher tava lá e até botou a vela nas mãos dele!
Foi um autêntico “Deus nos acuda”.
Fechou-se o boteco, mulheres vestiram-se de luto e prepararam cara de choro. Rosas foram apanhadas nos jardins, para enfeitar o caixão. Alguém mandou, imediatamente, avisar, na cidade, o candidato do qual seu Domingos era cabo eleitoral. E todo mundo tocou para a rocinha de seu Domingos, comentando na estrada:
— Coitado, morrer assim de repente.
Surpresa maior teve seu Domingos, ao ver todo aquele povo chegando junto, de carroça, a cavalo e à pé, em sua casa. Sentado na varanda da casa, ele não entendia o motivo de tanta gente chegar de uma vez. Nem era dia de festa junina!
— Qué que houve minha gente?
— Uai… O senhor não tá morto?
— Ora, eu tô é muito vivo. Quem foi que falou para vocês que eu tinha morrido?
— O Raimundo, uai!
— Mas vocês foram acreditar naquele mentiroso?
— É que o senhor não apareceu na venda hoje, nós “pensou” que era verdade!
Seu Domingos, então, explicou que não aparecera na venda pois estava esperando um tal Adalberto Queiroz, lá de Frutal, que vinha ver uns novilhos pra comprar.
— Negócio bom não se pode perder — argumentou.
Revoltados com a peça que o caboclo havia lhes pregado, os colonos resolveram ir tomar satisfação com o mentiroso.
Acharam-no em casa tomando pinguinha de um carote.
— Boa tarde, gente. Vamos tomar uma pinguinha?
— Que pinguinha o que, seu sem vergonha! Você fez a gente passar a maior vergonha, com o seu Domingos! A gente foi lá pro velório e ele está com mais saúde do que nós todos! Por que você fez isso?
– Ora… lá na venda do seu Mané, vocês não pediram para eu contar uma mentira? …
E ficou rindo, lambendo os beiços, tomando a “de engenho”…

Sérgio Carlos Portari

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Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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