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Fraco do Coração

Marcolino era um preto muito calmo. Não se abalava por qualquer coisa. Por isso, foi surpresa para muita gente, da Vila saber que o negro tinha sofrido um enfarte. “O coração dele tá fraco; o médico da cidade disse que ele não pode fazer mais esforço, nem ter susto muito grande”, contava Zé da Dita, o dono de todas as

fofocas do vilarejo.
Vivendo em sua rocinha há mais de 60 anos, o preto Marcolino não era desses homens de parar de trabalhar de uma hora para outra.
– Não, eu não largo a minha enxada de jeito nenhum – voltou resmungando na sua voz baixa e grave.
– Mas, home de Deus, se o dotô falô que é mió, ocê tem que obedecê, ora essa – respondida dona Alzira, companheira do preto há quase 40 anos, sabedora de todas as suas manias e já acostumada com as “birras do velho”.
– Mas, muié, arguém tem que cuidá pelo menos da hortinha daqui do fundo do quintal – rebatia Marcolino, passando a mão calejada pela carapinha que já ameaçava branquejar.
Ao final de muita discussão embaixo de uma parreira de maracujá que fazia sombra para dona Alzira lavar roupa, o casal chegou a um acordo: Marcolino deixava a roça por conta dos filhos, mas ficava com a responsabilidade da horta.
Na vila, em meio da roda do botequim do velho Domingos, Marcolino, grande herói da semana, contava detalhes da consulta e os conselhos do médico, aos quais rebatia sempre:
– Gente, cês sabem que eu não sou homem de ficá à toa.
– Ô Marcolino, cê nem parece que é preto, hem? -n brincava o espanhol, dono da venda, atacando (na rebarba) alguns fregueses que passavam o dia inteiro bebendo pinga no boteco e reclamando da falta de serviços.
Na tarde daquela quinta-feira, Marcolino esperava a hora de mais uma consulta no cardiologista. Viu aproximar-se o Zico Braz, o único vendedor de bilhetes de loteria da cidade.
– Sô Marcolino, tô lhe trazendo a sorte grande. Um bilhete do Viado que; é uma beleza.
– O sior tá brincando comigo, sô Zico?
– Que é isso, sô Marcolino. Olha o bichinho aqui: 09595. E olha que eu sonhei com o bicho essa noite e tô com um palpite que vai dá o viado mesmo!
– O sior sonhô com quê essa noite? – brinca o preto.
– Cô viado, sô Marcolino, com o bichinho cheio de galhos em cima da cabeça.
Marcolino acabou levando o bilhete. Levou e ganhou o primeiro prêmio. Era dinheiro pra matar qualquer um do coração, ainda mais o Marcolino, velho e cardíaco.
– Quem vai dar a notícia prá ele? – se discutia no botéco.
Ninguém queria ser testemunha de uma “morte de supetão”. “É ele ficar sabendo e, tchau”, diziam.
O escolhido, num lance feliz do Zé da Dita, foi o médico, Dr Cacildo, que tratava do coração do preto. Ninguém melhor que um doutor do coração pra dar a notícia. E lá foi o médico, montado no seu velho Aero-Willys, falar com o Marcolino. Chegou, viu o preto na horta, capinando uns matinho. Conversou muito, abordou o assundo da loteria. E até perguntou:
– Marcolino, se você ganhasse o primeiro prêmio, o que você faria?
– Ora, doutor, eu repartia metade com o senhor!
Duas horas mais tarde, a ambulância do hospital da cidade retirava, da horta, um corpo, numa maca, coberto até a cabeça. Um dos enfermeiros, ergueu a manta, olhou nos olhos arregalados do morto e lamentou:
– Coitado do Dr. Cacildo, morrer assim de repente. Ele era tão novo!

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rdportari

Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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