ETC & Tal – Agosto de 1999

Ao longo de sua existência, meu pai procurou juntar uma grande fortuna para me deixar como herança. Entretanto, eu, como todo mau filho, descobri o filão e fui sangrando os cofres onde meu pai acumulara a riqueza que me deixaria em testamento. Por isso, poucas horas após sua morte eu já me sentia um deserdado. Descobri, naqueles tristes momentos, que a maior fortuna que um ser humano pode amealhar em vida é constituída de alegria, paz de espírito, amizades e a consciência tranqüila.
Era com esses ingredientes – principalmente a alegria – que meu pai buscava erguer o castelo que me acolheria após o seu desaparecimento. Entretanto, a morte traiçoeira o apanhou desprevenido. Pior que isso, castigou-me de maneira brutal, deixando-me nas esquinas da vida, mendigo de migalhas de alegria, a mesma alegria que brotava dos lábios do seu Roque Portari com a mesma facilidade com que as plantinhas surgiam das sementes que semeava nos canteiros férteis de hortas e jardins das casas em que ele morou.
Meu pai não tinha medo das tristezas, porque possuía a mais poderosa das armas: o sorriso. Era dono de um bom-humor constante e distribuía lições de vida, tal professor particular que jamais valorizou seu trabalho. Meu pai só tinha medo da morte, porque ela era – para ele – sinônimo de lágrimas, tristeza e dor. Ele tinha medo de morrer e nos disse isso com a mesma honestidade com que sempre tratava os assuntos, fossem eles quais fossem.
Quando eu completei 14 anos, ele renunciou à condição de pai para ser unicamente amigo. Quando eu tirei diploma do ginásio, enquanto outros pais beijavam e babavam sobre seus filhos, ele limitou-se a apertar minha mão – como um amigo -, olhar-me nos olhos e dizer: “Parabéns; conte comigo para tudo, porque o futuro será cada vez mais difícil, à medida em que você se tornar adulto”.
Sem grandes rompantes de carinho físico, era – entretanto – companheiro leal, escudeiro fiel, amigo até as últimas conseqüências. Durante muitos anos tentei compreender porque meu pai substituíra os beijos por um “conte comigo”.
Só vim a entender depois de um balanço de nossa relação e ter chegado à conclusão de que em cada dez das decisões que tomei daí por diante, nove tiveram o seu aval. A outra, solitária, foi a decisão errada, que me causou decepções, problemas e prejuízos.
Por isso, numa tarde de domingo – quando fecharam a tampa da urna funerária para levá-lo longe de mim para sempre – despedi-me dele sem beijos e sem os abraços que, certamente, o constrangeriam. Preferi tocar sua mão num gesto tímido, escondido dos olhares da multidão em torno do caixão e, simplesmente, murmurar a frase que eu deveria ter dito vinte anos antes:
— Conte comigo, papai!


Esta crônica eu escrevi na edição do jornal esquema do dia 9 de julho de 1989, logo após a morte de meu pai. Na última quinta-feira, edição fechada só faltava a coluna. Não encontrava nenhum assunto e, ao mesmo tempo, queria fazer uma homenagem aos pais. Com algumas ligeiras mudanças, reaproveito a crônica porque, apesar de escrita numa hora de tristeza e dor, ela me traz agradáveis lembranças de momentos inesquecíveis ao lado de meu “velho” e tão jovem pai, que perdi sem tê-lo curtido o quanto desejava.
Só gostaria de acrescentar que neste período de festa e comemoração, apesar da crise, todos sonham com um presentinho, por mais simples que seja. Eu tinha meus sonhos: ganhar um velho Karmann Ghia, que está à venda em São Francisco de Sales e… até, um relógio Seiko, cuja foto vi numa revista semanal.
Falta dinheiro, infelizmente. Mas, tenho a obrigação de estar feliz. Afinal, a falta de dinheiro jamais afetou uma coisa em nossa casa: a relação pais e filhos. O sorriso, o carinho dos meninos; a ironia ao dizer que vão me dar um “sinto” de presente (isso mesmo, um “sinto muito, mas não tenho dinheiro para presenteá-lo”) fica a esperança de um presente futuro.
Eu serei imensamente feliz à medida em que tiver a certeza de que desperto nos meus filhos o mesmo amor e os mesmos sentimentos belos que meu pai sempre fez brotar em mim quando estava com ele. Melhor ainda se, quando eu morrer, eles sentirem-se exatamente como eu me sinto: com muitas saudades do velho pai que se foi, mas cuja mão eu sinto até hoje nos ombros, com um firme e decidido gesto de “conte comigo”

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rdportari

Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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