Etc&Tal – 31/01/1999

Meu filho Rodrigo está estirado, preguiçosamente no sofá. Parece que dormita, ao calor das 20 horas de uma segunda-feira. O calor é tanto, o sol ainda está tão forte que parece que ainda é dia. Na telinha da televisão, William Bonner e Fátima Bernardes começam a desfilar as manchetes do “Jornal Nacional”. Uma notícia chama a atenção: “Supermercado vai denunciar ao consumidor os fornecedores que aumentarem os preços sem justificativa e sem medida”. Da outra poltrona vejo o moleque franzir o senho num sinal claro de desconfiança e ironia.
“O que é que ele sabe da vida? Que peso da inflação ele sentiu no bolso até hoje para ironizar assim a notícia tão alvissareira que o Jornal Nacional nos traz?”, penso com meus botões. Minutos depois a notícia é destrinchada pelo repórter, que entrevista clientes e gerente de alguma loja do Carrefour de São Paulo. O homem diz que as prateleiras onde estiverem produtos que forem estratosfericamente remarcados, ficarão vazias, sem as mercadorias. Em seu lugar teremos um cartaz com o nome do produto e do fabricante e a justificativa de sua falta no supermercado: a remarcação desmedida. Todos, eufóricos, mostram o lado positivo da coisa: as indústrias, os fabricantes não terão coragem de deixar seus nomes e suas marcas expostos à execração pública e vão se abster de cometer algum tipo de loucura remarcativa.
Muito bom. Isso acontece nos Estados Unidos. Eu ameaço aplaudir a idéia. Lá do sofá, com seu vozeirão, o garoto mata minha euforia no ninho: “O senhor reparou que foi uma placa luminosa do Carrefour que provocou um acidente no final de semana, matando duas pessoas e ferindo outras 26, em São Paulo?” Sim, e daí? “E daí que, agora, eles divulgam uma notícia dessas só para desfazer a má imagem que o acidente causou à sua imagem”.
E não é que o moleque pode ter razão. Para sacramentar ainda mais sua tese, ele se levanta, liga o CD-Player do aparelho de som da sala, coloca um compact-disc e pergunta: “O senhor se lembra da música ‘O Malandro’, que o personagem João Alegre canta logo no início da ‘Ópera do Malandro’?” E aperta o play.
Imagine, o distinto leitor, que esteja ouvindo um sambinha cujo ritmo é marcado numa caixa de fósforos. Aos poucos, conforme os versos se agregam à melodia, vão entrando os demais instrumentos que fazem o arranjo desse belo samba que Chico Buarque adaptou de um poema de Bertold Brecht:
“O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/Dá no pé

O garçon no /Prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela Caixa
Dá uma baixa/ No português

O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor

Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis

O usineiro/Nessa luta
Grita/Puta que o pariu
Não é idiota/trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil

Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador

Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber

A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
contra o Banco/Do Brasil

O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
descarrega/No carregador

Este chega/Pro galego
Nega arrego/cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?

O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
a mesada/Do garçom

O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
pela situação”.
(Breque na orquestra/black-out no palco)
Na visão do menino, “o Brasil pode fazer o que quiser… até quando os ianques deixarem”. Na hora em que nossas medidas econômicas (ou não) pisarem nos seus calos, nós pequenos malandrinhos vamos pagar caro pelo que fizemos e por tudo o que não pudemos fazer. Salve-se quem puder.

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rdportari

Jornalista, professor universitário, Dr. em Comunicação

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